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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sangue

Um homem descia a rua, a uns bons quarenta metros na frente. Um shorts azul claro, camisa de algodão com gola e bolso, de um azul mais escuro. A cabeça de fios acinzentados, pele branca que reluzia à sombra das velhas árvores daquela rua, as costas já arqueadas pelo tempo. Seus passos eram pequenos, demorados. À frente, apoiava-lhe um andador, num compasso de três tempos – andador, passo, passo. Nos pés, um sapatinho de couro de um marrom clarinho, que usava sem meias. Os chinelos não lhe traziam firmeza, ao menos para uma caminhada como aquela que fazia.
Eu observava. Havia parado nestes quarenta metros atrás, a mãe precisava passar na mercearia. Não que eu concordasse: saia-se de lá sabendo que lhe foram expurgados ao menos uns trinta por cento sobre o valor do bem numa rede de supermercados, o bolso doía a cada assinatura na tal da caderneta. Mas domingo é domingo, e macarronada não sem faz sem molho. Então eu esperava, resignado, a compra. E foi nisto que notei aquele homem: meu coração prontamente enterneceu.
Não era qualquer um. Aquele pequeno homem, que andava num domingo de manhã sob a sombra de um dia bom (como zelava seus passos!), já há algum tempo não andava por ali. Disseram sobre problemas de saúde, cirurgia implicada. E implicada uma distância do mundo, da rua, do mercadinho, da farmácia, do jogo do bicho, das rodas de truco. Há algum tempo não se ouvia o assovio das marchinhas que ele trazia consigo da juventude, e sentiu-se falta de todos os causos que não se ouviam mais. Este tempo havido foi-se indo, indo, indo... de modo que foi surpresa para aqueles que lhe avistaram.
Ele não assoviava. A respiração estava concentrada na caminhada. Os braços fortes se apoiando no andador, força que talvez já não tivessem de fato. Ah, mas tinham de direito! E como tinham! Aqueles braços trêmulos, ossos marcados, a mão que teimava em fechar: diz-se da contingência da vida, e nessas horas nada é mais evidente para mim. Quis o destino que as mãos das quais tirou o sustento de seus filhos lhe negassem agora o trabalho; e a enxada já não poderia ser erguida por seus braços. Como que numa brincadeira, dava-se a ele agora uma única opção – resignar-se, pois o mundo já não poderia ser moldado por aqueles braços, e por aquelas mãos. Dor maior, para alguém assim, não posso imaginar que haja.
Pareceu-me que ele já não poderia empurrar por aquelas ruas o carrinho com o neto, que um dia ficou sob seus cuidados, ainda bebê, e com o qual passava de rua em rua dizendo: “olha, este aqui é o meu neto! netão do vô!”. Mas como negar, por isto, a idoneidade daqueles braços, que agora lutavam pra sustentar o velho corpo que teimava em envelhecer? Impossível. Porque os braços tremeluziam, a cabeça permanecia erguida. Era como se dissesse: “estas pernas e estes braços ainda não me venceram...”, os olhos azuis perfurando a rua. Era como se dissesse em alto em bom som: “eu gosto de viver, então não me atrapalhem”. E com os braços tremeluzentes, com seus passos curtos e cansados, este homem, a quarenta metros de mim, continuava. Parou ainda por alguns momentos, me deixando na ânsia de me aproximar. Mas logo continuou, um passo atrás do outro – ele saíra sozinho de casa, e sozinho haveria de voltar.
Sua cabecinha branca cinza chegou até um portão, eu pude ouvir o nhéc característico – mais uma adivinhação do que fenômeno físico que se relacionasse de alguma forma com meu aparelho auditivo. Logo, desapareceu quintal adentro. Em vinte metros de caminhada, uma postura que surge de uma vida inteira, e que se impõe sem uma palavra sequer.


Tenho orgulho deste sangue.

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