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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O Senado e a ética

Alguns leitores me cobram um comentário sobre a crise no Senado. Começo-o por uma inconfidência: estou com aquilo que os antigos romanos chamariam de "saccus scrotalis repletissimus".
No primeiro grande escândalo político durante minha carreira jornalística --as denúncias que culminaram no "impeachment" de Fernando Collor de Mello--, eu sabia de cor e salteado cada uma das lacunas nas explicações oficiais. Era capaz de dar os nomes dos agentes financeiros envolvidos na Operação Uruguai, o alegado empréstimo de US$ 5 milhões que o ex-presidente providenciou para justificar seus gastos na Casa da Dinda, e estava a par de todos os fatos e boatos acerca das disputas intestinas da família Collor de Mello.
Quando e então mandatário foi finalmente afastado da Presidência, eu e outros milhões de brasileiros estávamos convencidos de que o país abraçara um novo --e melhor-- paradigma no que diz respeito à tolerância para com os desmandos da classe política....

É claro que novos escândalos se sucederam, e meu ímpeto em acompanhá-los (que é um indicativo da disposição para cobrar resultados) foi aos poucos arrefecendo.
Hoje, é só por dever de ofício que eu ainda sigo o noticiário atinente ao clã Sarney. E inicio a leitura dos textos já ansioso para chegar ao final. É um assunto ao qual dedico porção mínima de minhas memória e "vis mentalis". Essa desatenção não é algo de que eu me orgulhe, mas confesso o lapso por considerá-lo importante para tentar entender o que está acontecendo.
Minha hipótese para a inércia na qual caímos, na qual escândalos se sucedem sem que nada aconteça, passa pelo que os epidemiologistas chamam de saturação dos suscetíveis. A classe média urbana politizada, um segmento que já não é tão grande assim, representaria o universo dos suscetíveis, isto é das pessoas que ligam para a política, ficam indignadas com as tramoias dos governantes e, em condições normais, exigem providências cada vez que algum mandatário é apanhado com a boca na botija. Ocorre que a repetição de toda sorte de esquemas de corrupção e compadrio sem que nada de mais palpável acontecesse levou à saturação dessa força de mudança social.
É verdade que os jornais seguem noticiando as traquinagens da família Sarney, as redes de nepotismo, os desvios de verbas e superfaturamentos. O Ministério Público, com toda probabilidade, continuará propondo ações contra tudo o que lhe pareça suspeito, mas, de algum modo, o tema deixou de comover. Ele já não mobiliza a sociedade. Não se veem mais caras-pintadas a cobrar o "impeachment" ou a renúncia de autoridades que os decepcionaram.
Acredito que muito desse processo de saturação tenha a ver com a chegada do PT ao poder. Durante duas décadas, representantes do partido constituíram a linha de frente dos que denunciavam a corrupção. Eram uma voz a ser ouvida, em especial porque os políticos da sigla estavam invariavelmente de fora dos esquemas que se desbaratavam. Hoje, sabemos que era mais por falta de oportunidade para locupletar-se do que por excesso de fibra moral, mas essa é uma outra história.
O fato é que Lula venceu as eleições, assumiu a Presidência em 2003 e, dois anos depois, veio o mensalão. O escândalo de compra de deputados teve um duplo efeito. Do lado das "positividades", serviu para mostrar que a política não se divide entre a turma do bem e a súcia do mal. Esse tipo de maniqueísmo funciona bem em Hollywood, mas é um pouco simplista demais para dar conta do mundo real. Se a política partidária ficou mais difícil de compreender e pouco propícia para entusiasmos, ela agora ao menos não se presta mais a esse tipo de ilusionismo. E isso é bom.
Do lado negativo, entretanto, os desvios petistas contribuíram para esticar ainda mais os limites de nossa tolerância para com as falcatruas de políticos. Depois de Lula e o PT, praticamente tudo passou a ser permitido. O "eu não sabia" do presidente da República evoluiu para as explicações escarnecedoramente absurdas dadas por Renan Calheiros e José Sarney. Incrivelmente eles não apenas continuam vivos na política como são forças das quais os prováveis candidatos à sucessão de Lula buscam aproximar-se ainda que de forma envergonhada.
Tenho um palpite para explicar o fato de termos nos conformado com os desmandos, em vez de nos tornarmos cada vez mais intransigentes nessa matéria, como seria de esperar depois de Collor.
Numa simplificação grosseira da história da filosofia, existem duas matrizes de sistemas éticos. A primeira, que podemos chamar de deontológica, têm como expoentes Platão e Immanuel Kant. Para esses autores, são os princípios que importam. Uma regra como "não matarás" ou "não mentirás" valem incondicionalmente, seja porque estão amparadas pela ideia de Justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade metafísica.
Na outra ponta está o consequencialismo, cujos grandes defensores incluem Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Basicamente, eles dizem que não existem princípios externos abstratos como a ideia de Justiça que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é através das consequências que acarretam. Vale dizer que são boas as ações que engendram bons resultados. No caso específico de Bentham (conhecido como pai do utilitarismo), o que importa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula: "o maior bem para o maior número de pessoas".
Embora essas duas matrizes sejam em princípio mutuamente excludentes no plano intelectual, nós, seres humanos, estamos sempre divididos entre elas. E por boas razões. Levados até o fim, tanto a ética deontológica quanto o consequencialismo produzirão paradoxos que não estamos dispostos a aceitar. A impossibilidade de mentir em qualquer caso preconizada por Kant me levaria, por exemplo, a admitir a agentes da Gestapo que eu escondo judeus em meu sótão, delito que me custaria a vida bem como a dos fugitivos. Já o consequencialismo me obrigaria a aceitar como válido o ato do médico que mata o sujeito saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pacientes que necessitavam de transplantes.
De algum modo, a rápida sucessão de escândalos nos afastou da ética de contornos claramente deontológicos e nos empurrou para uma matriz mais consequencialista-pragmática. É como se disséssemos a nós mesmos que, uma vez que todos os políticos roubam, só o que nos resta é escolher aqueles que, sem negar sua natureza, se mostrem mais eficientes ao promover o bem-estar geral. Foi assim que os sucessos econômicos ajudaram Lula a superar a crise do mensalão e o levaram a desenvolver anticorpos contra todas as denúncias. Pior, seus anticorpos acabaram imunizando também aliados do quilate de Renan Calheiros e José Sarney, para ficar apenas na categoria de presidentes do Senado.
Não tenho nada contra as éticas consequencialistas, que, em várias esferas, como a da bioética, funciona melhor do que os códigos puramente deontológicos, mas receio que nós estejamos exagerando. Não podemos, apenas porque a economia vai bem e não vemos alternativas viáveis aos atuais políticos, simplesmente esquecer todo e qualquer compromisso com o decoro republicano. Se o cinismo se impregnar definitivamente na vida pública, estaremos rifando nossas chances de erigir uma sociedade democrática com padrões de decência política compatíveis com os de nações do Primeiro Mundo. Já não sonho com isso para mim ou meus filhos, mas quem sabe para os netos que ainda não tenho.

Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

E-mail: helio@folhasp.com.br

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