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sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O paiol

Pra começar, o texto mais belo do ano passado. Algumas coisas mudam, mas algumas sempre permanecem. Inclusive os textos.



Era fim de tarde, o sol ameno já não mascarava o vento que lhes insistia em tocar e fazer-se frio. A estrada seguia a alguns metros diante de seus pés com mata nativa de um lado, dum verde sereno, quase que de um ser pragmático, um sendo qualquer que satisfaz-se com sua falta de motivo, e com a visão do vale que se aninhava entre os morros, entre os quais aquele que subiam, do outro. No vale o bloquinho azul que lhe intrigara na chegada ainda se destacava, e dava-lhe idéia da vila embrenhada. A dúvida sobre a realidade daquele lugar esvanecia a cada pedra que lhe irrompia a pele; as árvores de fato estavam ali, de todos os tipos e gostos, remetendo-lhe à virgindade de outrora de um local que em pouco tempo se tornou familiar. A casinha ao meio do morro, a chaminé do fogo a lenha, a grande figueira que fazia-lhes sombra, tudo pareceu muito natural para ele. O caminho que traçavam agora e que serpenteava o vale em curvas e mais curvas pareceu-lhe promissor, e segui-lo uma necessidade evocada de tempos antigos, onde o colo das histórias de seu avô embalava os sonhos da jovem criança.

A terra que tocava seus pés ungia as mãos dadas, tanto que por pouco tempo elas se soltaram. A certeza do outro não iria tão facilmente, dadas ou não as mãos. Mas justamente pela respiração em conjunto, justamente pelos passos dados sobre as mesmas pedras, justamente pela verdade de seus passos suas mãos se uniam, deliberadamente, para que o mundo pudesse abençoá-los. Por não precisarem dar as mãos, elas se davam. Por não terem medo de si mesmos, podiam compartilhar em silêncio esses momentos.
A estrada virou-se, súbita, para o paiol, indicando-lhes o passo. As pedras continuavam a infringir-lhes a pele, o que de nada adiantou. Porteira por porteira, o limite do velho paiol foi atingido, cinza que era, cinza que o sol poente fazia querer ser. Debaixo, da casinha de chaminé e figueira, não se via os bichos que ali cresciam, e tampouco a ruína duma velha casa ao lado, já com o mato a lhe tomar. A noite começava a entrar do alto do morro, e o vento insistia em avisá-los da hora próxima. Já não havia estrada, senhora de si; apenas um caminho que se imaginava a bel prazer no meio de pinheiros e seus cachos caídos, que levava ao topo. Os pés marcavam a terra, e vice-versa. Os passos foram comedidos, não sabia-se se pela onda de espinhos ou se pela dúvida do tesouro a encontrar-se. Ele fitava-lhe os pés e os seguia no possível, os ágeis pés da moça que ali cresceu. Mas não havia desdenho: era o caminho a ser seguido como o é aquele que aplica-se no primeiro dia de aula, traumático e contagiante. Seus pés só necessitavam acompanhar os passos dados, condição totalmente viável quando em aspectos técnicos da coisa. Faltasse-lhe o ar, que fosse, mas de lá não descia se pudesse chegar ao topo.
Será que de lá algo de celeste tocou-lhes? Houve de fato um deus naquele momento? Muitas coisas lhe vieram naquela hora, uma vida que se lhe entregava à porta de uma moradia nova. Escolhe, homem – diziam; mas é seu filho aquele que herdará seus desfeitos. E do mundo que em demasia pensava e observava, preferiu a distância.


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