Cachorro quente de noite em companhia de Victor e Ederson, alguém aí acha que fugiríamos do tema escola? Sim, fugimos, e discursos sobre sexualidade midiatizada ou exacerbação do erótico surgiram. Mas foi só. Logo o mau senso viciante da prática docente nos voltou à alma e começamos a discorrer.
E como discorremos! Não quero pormenorizar a conversa, meus dedos estão duros e doendo pelo frio. Mas tampouco pretendo desmerecer diálogo tão produtivo com palavras rareando pela má vontade climática. Tenho um problema, prevejam.
Somos professores de ensino fundamental, portanto trabalhamos com crianças, em sua maioria. Trabalhamos em uma comunidade periférica. Atendemos alunos com defasagens em amplo sentido: emocionais, afetivas, cognitivas, sociais e econômicas, todas interrelacionadas. Não fomos preparados para lidar com esta realidade. Optamos por nossa profissão não devido à impossibilidade de outras escolhas melhores economicamente, e este é o ponto mais claro e fundamento deste texto. No resumir dos bois, acordamos cinco e meia da manhã, ficamos 50 minutos num ônibus, atravessamos Porto Alegre, enfrentamos salas de aulas com alunos fora de qualquer ideal classe média possível, percebemos as limitações institucionais de nosso trabalho, nos preocupamos com alunos que chegam a uma oitava série sem saber ler cuja meta de vida é ser caixa de supermercado por impossibilidade de qualquer outra coisa, perdemos nossa voz e sono para tentar entender como fazer este grupo ter acesso a um conhecimento transformador de sua realidade, voltamos em ônibus lotados, estando exaustos e perplexos, geralmente.
A rotina não é fácil. Passar de um ano na profissão é gostar da coisa, ou ser muito omisso com sua própria felicidade. Ninguém é professor fazendo um trabalho decente se não gosta da coisa. Aí vocês peguem quem não gosta e é professor, e usem de lógica básica.
O negócio é duro. Muy duro. Avaliação dos professores é necessária, para cortar os ruins? Percebam, ruins, não maus. Os caras que um dia passaram num concurso, mas que não atendem ao interesse público de educar, que não se preocupam com a própria formação e, portanto, com a formação de seus alunos, merecem o salário que recebem? É possível, no entanto, avaliar alguém, se o interesse público é guiado por um grupo dominante que assume o poder e que visa as escolas como pré-cadeias, como diria o Álvaro? Quem avaliaria justamente a profissão, se o que mais facilmente acontece é grupos oficiais de burocratas com cargos de confiança e funções gratificadas (e filhos em escolas particulares) jogarem suas culpas e irresponsabilidades nos professores (bons e ruins), ao invés de melhorem salários, oferecerem formações decentes, melhorarem a infra-estrutura e pensarem em formas de minimizar os danos de um contexto sócio-econômico desfavorável na educação que preconiza a formação de um cidadão?
Até que ponto não estão pressupostas aí a necessidade dos professores bons tomarem a frente e agirem politicamente para forçar melhorias? Até que ponto os bons podem mudar alguma coisa? Até que ponto o indivíduo enfrenta com êxito todos os seus condicionamentos? Até que ponto uma ação partidarizada não seria necessária, ou sindical? E, sendo necessárias, até que ponto podemos agir partidarizados, com tantos interesses ocultos e poderosos?
Será que poderíamos, humildemente, ensinar aos teóricos da academia a necessidade da academia deixar de ser teórica? Será que poderíamos nos equiparar a caras que pensaram problemas do seu tempo e hoje são citados e citados e citados, quando só queriam uma resposta legítima para um problema legítimo, e buscaram com afinco, trabalho e, acima de tudo, com amor, a tal da resposta?
Será que chegaríamos ao ponto de achar uma didática nossa, made in Dolores, para aquele grupo de alunos, uma didática efetiva, construtiva, qualificada, transformadora?
Não sei das respostas, mas tenho uma ideia clara sobre quem deve achá-las. E tenho ideia mais clara ainda sobre meu pressuposto: sou um funcionário público, exerço uma função de interesse público, recebo proventos públicos, e tudo objetivando a formação dos meus alunos. Formação plena, é importante dizer. Portanto, não importa se a sociedade é injusta, se há um sistema do mal conduzido por seres egoístas, se o Corinthians é líder do brasileirão ou se meus alunos são defasados como citara acima. A minha responsabilidade, e acho que meus interlocutores do cachorrão concordam, é maior do que as dificuldades que me espreitam. Porque eu escolhi a profissão. Posso “desescolher” a qualquer momento, e me livrar deste ônus. Se não der conta da coisa, há inúmeras outras coisas que posso fazer, capacidade e coragem nunca me faltaram.
Mas enquanto estiver nesta função, aceito explicitamente o fardo que ela carrega. São todos esses listados no decorrer do texto, não poucos portanto.
São tantos pequenos fardos que só me sobra uma opção, o amor. Amor àqueles a quem sirvo. Uma crença de que sim, podem mudar, e que seus filhos terão mais chances do que eles, ou que os filhos de seus filhos. Que a falta de ambição que vejo em seus olhos é uma anomalia cirurgicamente implantada por um mundo que não é justo, mas que com os instrumentos certos pode ser também cirurgicamente extirpada. Tenho a crença na formação do homem por si mesmo auxiliado pelo mundo, um homem respeitador de outrem e de si mesmo. Que talvez não tenha consciência da relatividade ética, seus perigos e os imperativos que precisamos criar, mas que possa levar seu filho e lhe dizer como é o mundo num pôr-do-sol num dia tranqüilo, ainda que o mundo não concorde plenamente com isso. Talvez este homem não tenha consciência de que minha crença nele não passa disso, uma crença; mas possa ensinar àqueles no seu entorno que é melhor respeitar aqueles que crêem diferente do que exterminá-los.
Este homem são meus alunos. Eles são crianças. Eles são sementes. Às vezes, sementes mal plantadas, ou cultivadas fora de época. Ora, mesmo a árvore à beira do penhasco dá frutos em seu tempo, abriga um ou outro ninho, sombreia o pé do morro, indiferente que este morro seja.
Ser professor é amar as crianças que educamos, e quanto mais difícil parecer ser a tarefa, mais trabalho colocar em cima. Confesso que isto me dá medo. Não acho que vá mudar minha escola em um ano ou dois. Ao mesmo tempo não sei o quanto me doeria não ver meus pais envelhecerem e não estar perto deles neste momento. Aliás, sei sim. É por isso que tenho medo. Fazer meu trabalho bem feito é estar totalmente aqui, sem passagens de volta compradas.
Seja lá o que vier, me orgulho de estar vivendo estes momentos com estas pessoas. Nem todas as teses e dissertações do mundo valem algo perto disso.
5 comentários:
É..o duro é ter que ouvir de uma dona do salão: a culpa da sociedade estar como está é dos professores que não ensinaram direito! Se eu fosse vc seria maquiadora!
Nosso trabalho extremamente desvalorizado em todos os sentidos.
Me pergunto: o que fazer?
Começa-se brigando pela valorização, que por sorte parece haver aqui em poa.
e trabalhando, lutando, pensando na educação como um todo.
é uma baita responsabilidade. qto à dona, não compensa responder... teria que perguntar quanto ela tira no salão dela e comparar com o salário de professor no estado.
ela não ficaria dois dias numa sala de aula.
ser professor é para os melhores.
:p
A tal conversa continuou timidamente hoje na volta para casa e ses demais afazeres. Faltou o incentivo de nosso interlocutor mais polêmico, assim como de mais energia, naquele latão lotado.
Penso muitas vezes "o que fazer?" em relação a escola, e essa peergunta me incomodou ainda mais quando comecei a trabalhar de fato na escola. Pelo menos temos nossas conversas e alguns exemplos cotidianos na escola que me motivam além de meus companheiros de latão. Sua existência me faz continuar todos os dias nesse caminho estranho. Uma professora adoecida, um líder, um jovem vibrante e um professor reflexivo.
Você deve saber quem são. Será que o pessoal recém chegado em nossa escola, e em muitas outras, e também a gente, serão novos exemplos? Será que encontraremos espaços, tempo, e forças, para construir junto com eles? Será que teremos nós, os recém chegados, a iniciar um movimento ampliado, uma proposta para os alunos, ou ela já está acontecendo, cescerá, e nos envolverá ainda em tempo?
E vamos conversando!!!
Inté!
Perguntas e perguntas meu caro Victor, rs. Ao menos neste ano, procuraremos juntos!
Abraços
*só sei quem é a professora, que a quem aliás devo um email. Mas não saber não tem importância neste caso
:p
Depois vc me fala que não gosta do lance... Sei.
Abraço! E boa jornada (que eu tenho conhecimento de como teu trabalho é difícil e importante)!
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