Analisando a BNCC, percebe-se que a filosofia não é atividade pensada para crianças, sendo inserida somente no ensino médio. Apesar de falar de forma genérica e não citar especificamente a filosofia, o trecho que introduz as ciencias humanas e sociais aplicadas no ensino médio apresenta um motivo que ouso se relacionar com essa exclusão: ''dada a maior capacidade cognitiva dos jovens, que lhes permite ampliar seu repertório conceitual e sua capacidade de articular informações e conhecimentos. O desenvolvimento das capacidades de observação, memória e abstração permite percepções mais acuradas da realidade e raciocínios mais complexos – com base em um número maior de variáveis –, além de um domínio maior sobre diferentes linguagens, o que favorece os processos de simbolização e de abstração."
Acredito, por falta de conhecimento para dizer saber, que um posicionamento destes implica num vasto conhecimento das condições fisiológicas relativas ao desenvolvimento cerebral de um ser humano. Afinal, está contida e explicitada no documento que deve pautar a educação nacional. Ainda sim, aceitando com verdade essa incapacidade da criança para estabelecer relações mais complexas, não me parece claro que a filosofia não possa ser trabalhada em outro nível, adotando-se um instrumental adequado à faixa etária de 12 a 14 anos do meu público. Que eu tenha resposta para qual instrumental, quais princípios norteadores, quais conteúdos que lhe validariam é outro assunto. Não a tenho. Mas ou assumo que é possível e construo este caminho ou abandono meu cargo por não acreditar no que faço. Não exauri todas as possibilidades de construção, então sigamos.
Feito este primeiro apontamento sobre a exclusão da filosofia no fundamental, é fácil para o professor desta disciplina recorrer às competências e habilidades do ensino médio para se socorrer em burocracias e afins, mas, além delas e o que me interessa, ter um norte que legitime seu trabalho perante a comunidade escolar. Ainda que pessoal, arrisco dizer que esta legitimação se resume numa simples questão: o que ensino forma meu aluno de acordo com o que a comunidade espera que ele se torne? Por comunidade vamos desde os microcosmos e suas idiossincrasias de cada bairro onde uma escola está até um projeto de cidadão que estabelecemos como nação (ou serviria para outra coisa uma BNCC?).
Mas, apesar de ser fácil se instrumentalizar deste referencial, não me parece tão simples justificar o movimento. Ora, se são competências pensadas justamente a partir do pressuposto de uma condição bio-fisio-psicológica (ou o que se estuda numa pedagogia que não sei), adaptá-las soa no mínimo contraditório. E, então, voltamos ao início do problema: que raios ensinar no ensino fundamental desse elefante branco e lindo chamado filosofia?
Uma possível resposta vem no próprio trecho introdutório citado: se não há currículo anterior de filosofia ao ensino médio, há fins que devem ser buscados pelas ciências humanas e sociais aplicadas no decorrer do ensino fundamental, a saber: concretizar o processo de tomada de consciência do eu, do outro e do nós; das diferenças em relação ao outro; da consciência das diversas formas de organização da família e sociedade em diferentes épocas históricas. Para isso, a BNCC apresenta conceitos chave pelos quais se alcança tais objetivos: temporalidade, espacialidade, ambiente, diversidade, modos de organização social, relações de produção, trabalho e poder. Seria possível, num exercício arbitrário de um solitário e utópico professor de filosofia, linkar estes fins e conceitos a um currículo de filosofia?
Não me restam dúvidas de que sim. Ora, tomada de consciência é o que mais se faz ao filosofar, ainda que não seja tão poliana quanto o texto faz parecer. Por vezes dói. Olhar a si mesmo, ao outro, ao nós e nos situarmos no mundo, nos relacionando, construindo uma realidade conjunta... quem sou eu, o que é o mundo, como devo agir perante o outro, como devo agir perante o mundo.... para que estou aqui? Não é história ou geografia quem trará as respostas. Elas contam o que houve e como é, ainda que por interpretações diferentes. Esse grau de reflexão, de significação, é filosófico. Quanto aos conceitos, óbvio que são abordáveis, se é que existe o termo, de forma filosófica. A questão é: apesar de ser possível, devemos dar esse passo? Por um lado, há um buraco conceitual na BNCC que não está lá por acaso. Filosofia é para adolescente (e como minha vida seria mais fácil!). Por outro, uma rede que um dia acreditou que crianças poderiam ser melhor formadas se aprendessem filosofia desde cedo, ainda que não tenha explicitado como, não discutir isso com seus professores e com a academia, não ofertar formação continuada ou fóruns de discussão e sequer ter uma coordenação municipal que pudesse centralizar estas demandas. Bom, cada povo com o governante e rede de ensino que merece... não? Pois é, complicado. Até é, mas é impossível estar inserido neste contexto e não tomar posição. Ou melhor, até é. Que professor não gostaria de ser vida loka e dar o que quiser na sala de aula, sem supervisão do que faz e porque faz, se amparando num buraco institucional e na falta de conhecimento da rede sobre sua disciplina? A pergunta foi irônica. Eu não gostaria. Então não se posicionar seria só uma omissão tosca (perdoe-me o maniqueísmo, isto é mais uma nota de estudo do que um texto voltado a outras pessoas).
Ainda sem responder se devemos dar o dito passo, sigamos num roteiro onde faríamos esta construção. Então a tomada de consciência é perfeitamente exequível, assim como uma abordagem filosófica dos conceitos. Essa abordagem visaria ampliar a significação do aluno para os conteúdos que vê nas aulas dos anos finais, ou até antes. Nada impediria, inclusive, que outros conceitos pinçados de um diálogo com outras disciplinas entrassem nesse escopo, buscando-se a idealizada transdisciplinaridade. Mas vamos além: o que seria esta tal abordagem filosófica? Me vem à cabeça, de sopetão, uma abordagem que insira os alunos em contextos nos quais são abordados tais conceitos em sistemas de significação da realidade, ou, se preferirem os puristas, sistemas filosóficos. Falar de tempo em Kant em nada se relaciona com um relógio ou a hora do recreio, mas com uma condição a priori do conhecimento humano; e de condições a priori do conhecimento humano poderíamos ir ao que nos diz a neurociência do século XX! ou retornarmos às categorias aristotélicas. Navegar na história da filosofia, não por ela mesma, mas sim pela busca de significação de conceitos importantes que esta história nos apresenta lindamente. Apreender estes conceitos, a racionalidade que os baseia, o espírito que carregam, o que fizeram do mundo que tocaram. Assumir este olhar do pensador e, com alguma competência e muita sorte, poder vivenciar parte de seu pensamento no hoje, dentro de nós. Esta história nos apresenta, e eis mais uma condição para considerarmos uma abordagem filosófica e não blablabla de conceitos chatos e vazios, uma forma racional de abordagem, uma estruturação em argumentos que podem ser medidos, refutados. Nos leva para fora do campo das crenças arraigadas que temos todos, nos leva para o campo de batalha discursivo de forma aberta e com armas justamente distribuídas (não foi Descartes quem disse não se pode pensar que algum homem seja mais dotado de razão do que outro?): o direito do outro falar, de estar certo; mas também a necessidade que prove à minha razão sua certeza. Não cabe mais um eu acho ou acredito, tampouco um porque sim. Como chegar nisto? Talvez um pouco de lógica básica, noções de argumento e seus usos (círculos de debate), incentivo a uma postura reflexiva (diário de aula) e, claro, aquilo que me falta: tornar Kant e seu tempo apetecível a crianças. Consigo? Talvez. Mais provável quanto maior a clareza do que e de como deve ser feito.
Uma outra vantagem de seguir por esta construção é que ela permite seguir a didática da filosofia proposta por Pires da Rocha, a saber, essa abordagem transdisciplinar de conceitos chaves.
Se este quadro fosse aceito, aí talvez valeria ir às competências de ensino médio e suas habilidades, pinçar aquilo que cabe a um currículo de ensino fundamental da realidade em que trabalho e ir adequando conforme o uso. Claro, no mundo ideal este tipo de construção curricular se faria com os pares, com a supervisão e seria validado e analisado pela comunidade, ao menos em sua representação, que por lei valida um projeto político pedagógico, o conselho escolar. Mas deixemos o ideal de lado. Temos um caminho?
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