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quinta-feira, 19 de março de 2009

João Gilberto

Quando um cantor se serve do violão para se acompanhar - um seresteiro como Sílvio Caldas, por exemplo -, ele tem no instrumento um complemento para sua voz, um guia para não se perder na afinação e na linha melódica. O instrumento é mais importante para ele do que para a maioria da platéia. Para a platéia, o violão está em segundo plano.

Em João Gilberto, o violão é metade de um conjunto sonoro completado pela voz, formando um bloco, uma entidade unívoca de voz e violão, e não de voz com violão. É portanto um outro conceito, representado por dois timbres diferentes, o da voz humana e o das cordas do violão, formando um terceiro timbre, que, por sua vez, exige uma capacidade de atenção absoluta.

Essa entidade sonora volátil e magistralmente bem proporcionada é o universo de João Gilberto, é como ele vê uma canção, como concebe uma interpretação, é a forma de uma música existir em sua obra. Sua capacidade de sublimar canções lhe dá condições de um corriqueiro "Parabéns a Você" ou uma simplória "Oh, Minas Gerais" soarem como algo novo, nunca ouvido antes, sem ferir o espírito do original.

Se ouvir um disco de João requer, pelos motivos acima, atenção redobrada, além de um preparativo cercado de silêncio, seus espetáculos são verdadeiras aulas de música brasileira, de uma nobre brasilidade -a começar pelo gosto com que canta a palavra "Brasil". Ao vivo, seu repertório se distribui em dois grupos. O primeiro é o dos clássicos, canções que ele lançou e que valem pela riqueza renovada de informações musicais a cada interpretação, numa recriação da recriação, que não tem limite. É o caso de "Desafinado", a música que mais gravou, e sempre uma novidade que se aguarda ansioso, para ver como será desta vez. O outro grupo é o das pedras preciosas que João retira de sua arca, deixando as pessoas se entreolhando sem saber de onde surgiu aquela canção. Em geral são velhos sambas ou marchas dos conjuntos vocais, inteiramente recompostos na sonoridade voz-e-violão de João Gilberto, as assim chamadas interpretações joãogilbertianas.

Na sua apresentação no programa O Fino da Bossa, da TV Record, em 1966, João cantou apenas três músicas, mas deu uma de suas preciosas aulas de música popular brasileira. A primeira foi "Eu Sambo Mesmo", de Janet Almeida, lançada pelo conjunto Anjos do Inferno em 1946 e só gravada por ele muitos anos depois, em 1991. As outras duas ainda não foram gravadas por João: "Exaltação à Mangueira", conhecido samba cantado em 1956 por Jamelão, e "Pica-pau", uma marchinha de Ari Barroso gravada pelos Quatro Ases e Um Curinga para o Carnaval de 1942.

No ano 2000, ele incluiu em seus espetáculos o samba de Herivelto Martins "Às Três da Manhã", que disse ter aprendido com Araci de Almeida, a primeira a gravá-lo, em 1946, tendo sido regravado muito mais tarde por Moraes Moreira, em 1977. João tem um arsenal de canções brasileiras, muito além do que se imagina para seus espetáculos, fazendo essa historiográfica conexão com canções do passado que estariam praticamente perdidas no tempo. Sua ligação com os conjuntos vocais dos anos 40 é uma das fontes para pinçadas como essas, que intrigam a platéia e provocam a crítica.

Ouvir depois de João as versões originais é uma surpreendente experiência, pois fica mais clara a carga de informação acrescentada. Ele decompõe a canção pedaço por pedaço, frase por frase, acorde por acorde, e a reconstrói como um artesão, sob a forma unívoca de um som de voz e violão, acrescida do caráter de um esteta.

É esse esteta que se ouve nos espetáculos e discos que João Gilberto realizou depois que voltou a residir no Brasil. Convidou Rita Lee, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethania para os dois primeiros discos brasileiros (1980 e 1981), instigando-os a cantar como ele, de modo independente do estilo de cada um. Como por encanto, foi o que aconteceu com cada um, surpreendentemente até com Maria Bethania, na gravação do LP Brasil: "Eu gravei com ele sem fone, sem nada, conversando, cantando nós quatro (João, Caetano, Gil e eu), só com o violão dele, cantando, cantando, uma coisa louca []. Então João me botou pra cantar assim. Quando me ouvi, eu disse: que é isso? Eu tomei um susto, porque é outra coisa. Não tem uma lembrança da cantora que eu sou. Da cantora que todo mundo conhece dos meus discos. Não tem nada a ver. Fui apresentada a mim de novo" (depoimento de Maria Bethania para o press-release de lançamento do disco Brasil, da WEA).

Em alguns dos espetáculos programados no Brasil, como no Canecão em 1979, João Gilberto enfrentou dificuldades com a sonorização, embora muitas vezes estivesse sozinho com seu violão, ou seja, com a simples combinação sonora de sua identidade musical. Esse é um dos aspectos que têm gerado as maiores controvérsias e acusações (chegando mesmo a processos judiciais) e sobretudo a fama das descabidas necessidades de João Gilberto. Embora esteja muito longe das exigências de algumas estrelas do show business, João é irredutível num ponto: a qualidade de sonorização tem de ser irrepreensível. Voz e violão precisam estar perfeitamente equilibrados, audíveis de qualquer ponto, com um retorno perfeito para sua própria performance; enfim, ele não aceita o quase perfeito. Seu apuro auditivo é de tal ordem que consegue detectar em instantes o que técnicos não perceberam, chegando a duvidar de suas colocações. Ao final, acabam admitindo que ele tem razão.

Sua notória preocupação com a sonorização em espetáculos não é com o volume do violão e da voz no ambiente. É com a clareza, a pureza, a definição e o equilíbrio entre sons agudos, médios e graves, com as freqüências harmônicas, como se os sons da voz e do violão pudessem ficar nitidamente próximos da platéia. Em suma, gostaria de chegar ao ouvido de cada um como se estivesse a centímetros de distância e não a vários metros. Parece utópico, mas a acústica registra inúmeros casos de vastos ambientes onde um ator ou cantor, mesmo falando relativamente baixo, consegue ser ouvido com nitidez a uma grande distância, como se estivesse ao lado do espectador. É uma das surpresas de que se gabam os guias turísticos nas visitas a certas arenas e teatros gregos do passado.

Quando a sonorização está perfeitamente ajustada, ele consegue manter a ilusão de que uma sala com 3 mil pessoas é tão pequena que o cantor parece estar à frente de cada um. Nessas condições, um espetáculo de João Gilberto é uma inesquecível experiência de integração entre o artista e a platéia, hipnotizada pela magia de seu som.


créditos: http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u431449.shtml

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