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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Goleiro

Ele tem 10 anos, "quase 11", segundo ele mesmo. É pequeno como se oito tivesse. O cabelo moicano loiro é usado desde o começo do ano, senão mais. Não esconde a falha de uma cicatriz, marca de guerra de algum jogo imemorial no campinho ao lado - me permitam, leitores, devaneios. Seu traje cotidiano mostra a quem tiver olhos sua identidade secreta: calças sob as meias, tênis baixo e camisa de manga. Não há pelada para a qual ele não esteja preparado.

Ultimamente tem jogado todos os dias na quadra da escola, após o almoço. Não tem luvas, "alguém estragou". O grau de desinteresse da resposta me indica que nunca houveram luvas por ali, esses penduricalhos desnecessários ao exercício da profissão importantes somente para professores velhos e que nunca pegaram no gol. Goleiro bom pega na raça, bola de capotão ou de borracha, mão vermelha é sinal de trabalho bem feito. 

A voz fina, de criança, aproveita os ataques do time para incentivar o time e guiá-lo, maestro que tudo vê. Os passinhos dados à entrada da área rapidamente voltam mirando o centro do gol se ameaçam um contra-ataque. Num desses intervalos ele se vira e me diz, sorridente, que "quando a bola rebate mata o goleiro, pissor". Acompanha a fala um gesto com as mãos em direção ao travessão que ainda não alcança. Num arroubo para completar o movimento, pula, sem novamente alcançar, demonstrando didaticamente o ponto fraco usado pela sorte dos adversários para passar por ele. 

"Tem vindo ao treino?"

"Não fessor, tava machucado... mas semana que vem vou vir!"

Mais uma daquelas respostas que me colocam em dúvida. Há no tom sincero e ingênuo uma despreocupação total em relação à preocupação do adulto. Treinar não é brincar, não tem portanto importância prática. Os olhos dividem a visão com o professor atrás do alambrado e o jogo que se desenrola. Sai o primeiro gol, e mais uma vez aquele sorriso se vira e recita ao mundo: "já foi o primeiro, já foi o primeiro!"

Não leva muito e uma entregada do zagueiro faz nosso pequeno defensor ser vazado. "Que que é isso zagueirão, recuar na área com marcação em cima? Chuta pra fora, pô!" - esse sou eu, já envolvido pelo espetáculo desordenado de cultivo futebolístico. Não deu outra: bola no ângulo direito, lá onde nosso herói não alcança, apesar do belo salto e da queda macia. Injustiça dos deuses do crescimento, blasfêmia do santo protetor dos atacantes!

Mas o pequeno crescerá, e alcançará um dia todas as partes da meta. Altura agora não importa. Ele já é um goleiro, faz parte de sua identidade. Ninguém que não seja um goleiro pede para jogar no gol logo na escolha dos times, isso é a lei mais óbvia conhecida pela molecada de todos os tempos. Que não perca esta criança o brilho no olhar e o sorriso que agora cultiva ao voar nos pés dos adversários de modo feroz. Estaremos aqui, zelando, observando e admirando. Essa é a nossa profissão. 


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