- O Smallville, já terminou o exercício?
- Não - reluziram os olhinhos azuis sorridentes.
- Então... termina!
E foi assim que o guri baixinho, de franja e aparelho, que consegue sorrir sorrateiro por jogar um limão escondido no chão achando que o professor não tá vendo, começou a formular as quinze questões impostas pelo professor.
- Coisas que vocês sempre quiseram saber, mas nunca ninguém falou... vamo lá, moçadinha. Quem terminar, traz pra eu vistar.
Enquanto as cabecinhas pensantes estavam a funcionar, o professor contemplava a visão. Porto Alegre estava aos seus pés, e eles já haviam se habituado. Mas o professor, não. Era difícil para ele não se perder na vista.
Começaram a vir para os vistos. Correção do português, um ou outro apontamento para uma pergunta mais filosófica, e o sentimento de que crianças são muito mais agradáveis do que adolescentes. Fazem fila, colocam tudo de si, brincam e não estão nem aí para como parecem. Quer dizer, as crianças do sexo masculino. Enquanto as meninas lidam já com o ser mocinha, os meninos querem é algazarra (talvez não mude tanto assim nos anos que se seguem a essa fase). Para eles, o professor estava ensinando, além de rudimentares noções de filosofia, o jogo da sardinha, sua diversão em tempos idos de Vital Brasil. Há mais entre a prática e o currículo do que sonha tua vã filosofia, calouro - já dizia Aristizábal, o poeta.
Pois bem, no fim da fila estava o tal do Smallville. Se não é óbvia a alusão, esclareça-se corresponder à cidade do superboy. E o piá ganharia tranquilamente o papel, não fosse mais propício a ganhar para Denis pimentinha. Antes dele, porém, uma das gurias havia já trazido suas respostas inventadas para perguntas sem resposta. Mui divertidas, por sinal. Se formular hipóteses não chamaria tanto a atenção dos pequenos, só bastava dizer o seguinte:
- Algum professor já deixou vocês inventarem as respostas dos exercícios? Então, tá liberado...
Eis que, para a ótima pergunta "quem inventou a música?", ela respondera "um cachorro". O professor sorriu, e leu alto. As crianças riram, e ele embalou:
- Ah, vocês nunca viram os cachorros cantarem?
- Não! - um coro uníssono respondeu.
- Seus fracos! Eu, por exemplo, já vi vários cachorros conversarem. Sei falar bom dia em cachorrês.
- Mentira, professor!
Será complicado descrever o que é uma turma de crianças de 11 anos desafiando adultos que estão tirando sarro descaradamente de suas carinhas. Eles entram no jogo muito facilmente. Esperam ansiosos pelo dizer do artista, aquele que o Antonio, o Luiz, o João, e tantos outros que escolhem deixar de ser eles mesmos em favor de outrem, assumem ao entrar pela porta de uma sala de aula. Ali, a vida é um palco. São vinte e cinco pessoinhas para entreter e, mais do que isso, educar. Haja palhacice, deus meu.
- É claro que não - se defende o professor. Vejam só: bom dia em cachorrês é au auuu, uma voz esgarnecida num longo silvo.
E a criançada se pôs a rir.
- O Smallville, conversa ae comigo.
O garoto pareceu não entender. Mas só não pareceu:
- Auauau? - o professor perguntou.
- Auau - superboy respondeu, tímido.
- Auauau, auau. Auauau, auauauauau - uma afirmativa que pedia concordância.
- Au au, au au. Au au au, auauauauauau - concordou, aumentando a ênfase.
E assim foram, os dois palhaços. A aula terminou, por fim, e o professor se dirigiu à abarrotada sala dos professores, para o blablablá adulto e chato, mas necessário. O tempo parou num olhar fixo para os armários, as vozes em volta afastadas. Então uma voz o fez retornar:
- Ei, professor, qual o motivo da viagem?
Ele se virou, retornando da própria mente:
- Ah, é que eu falei em cachorrês hoje... foi legal - respondeu sério.
Depois, bem depois, ele iria pensar sobre o valor de sua asserção numa sala lotada de adultos, uns próximos dos outros. Coube a ele somente uma coisa, então. Riu sozinho, como geralmente fazia ao ser surpreendido pela vida. Talvez um dia escreverá um texto sobre, relembrando da felicidade que se encapsulou naqueles momentos.
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