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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Uma noite em São Paulo


Desde de 2010, naquele fatídico março de mudanças, a coisa toda estava entalada. Era a hora chegada, o gosto idealizado cultivado por alguns anos se transformaria em papilas gustativas devidamente saciadas. Mas, emprestando dinheiro para viajar à Porto Alegre, como ir à São Paulo vê-lo tocar? Já estava aí decidido que não iria, mesmo com as inúmeras viagens da imaginação buscando soluções mágicas para contornar dois destinos tão desiguais.
Não gosto de blues desde sempre. Tenho a pança cheia e meus problemas existenciais nunca foram levados à música de contestação, como o rock. Me divertia, quando guri, tocar o violão fazendo canções bobas de amor. Se alguma música ajuda a definir o que sou, ela passa pelo tal do caipira que meu pai e meu avô escutam. Rock, não. Talvez o tal do pop rock, aquela coisa aveludada com riffs de guitarra e cara de mal de jovens com pança cheia como eu. Efêmero.

Neste contexto, o blues não apareceria. Som de gringo, sem significado algum, numa língua que desconheço. Eis um conceito que carrego até hoje: não ouço o que desconheço de bom grado. Se a linguagem é a música não há problemas. Mas se há uma letra há uma mensagem, se há uma mensagem ela deve ser compreendida, e só há compreensão quando conhecemos o código lingüístico. Que haveria contextos, posturas, usos e significados subjacentes eu aprendo agora, depois de passada a aborrescência.
Naquele 2010, no entanto, já havia o blues. Meu tio, de uma geração diferente e sempre a querer ensinar o que ele mesmo vislumbrou como bom (um professor, pois não), insistiu, e assim o faz até hoje, em refinar meu gosto musical, e me apresentou ao tal do blues.
Um problema decorrente daí é que esse refinamento demanda uma mexida na estrutura do que sou, o que sempre é difícil. Há coisas, lobo do mar, que se movem de dentro para fora. Tenho a sensação de que a maioria das coisas importantes são assim, um refundar-se de dentro. Claro que delimitar tal movimento é complicado, somos um vai e vem com o mundo que nem jeito de ser sujeito uno há no momento sem análises e enfins. Pulando a firula analítica de baixo padrão, fato é que o mundo se planta em nós e nos condiciona, mas, defendendo meu ponto, é o ponto em que nos deixamos marcar que importa. Tensa definição... Apliquemo-la depressa, para não alongar o causo: veio-me o blues, e por ele me deixei marcar. A roda que me movimenta possui, desde então, uma outra engrenagem, cuja rotação emite um som soando como “Please, accept my love”, e cujas marcas deixam pelo chão flores chamadas “Lucille”.
Não é necessário ser detentor de uma cultura musical fora de série para perceber que este que vos escreve é um fã inveterado de Mister Riley Ben King, mais conhecido como Blues Boy King ou, se preferir-se, BB King. E, obviamente, é ao show deste senhor de face expressiva e dedos mágicos que se refere o dilema de minha vinda à Poa.
Além de minha condição financeira ser ruim em 2010, minha cabeça era outra. Faltavam-me coisas e mais coisas que dois anos fora de casa e longe da família fizeram crescer em mim. Analisar aquele mês de partida, com lágrimas escondidas e medo do mundo, traz um gosto doce neste momento. O garotinho mimado e de pança cheia criou asas, não tão belas e ousadas como imaginara aos dezoito, mas grandes o suficiente para se sustentar durante um vôo de cruzeiro. Aprendi a perder, a valorizar, a partilhar. O mundo somos nós, e casa é onde estamos. A dor que outrora sentira por amor (falso amor) se transformou numa verdadeira dor de parto. Dei à luz a mim mesmo, incompleto, inseguro, ser humano médio (e real). Ouço agora crianças gritando ao meu entorno e acho isso o máximo. Ensino que filosofia está em cada um de nós em cada momento e acho isso o máximo. Passo noites acordado tentando dar jeito no meu pequeno mundinho de professor e, sendo repetitivo, acho isso o máximo.
Algo, no entanto, perdurara desde aquele março de 2010: o arrependimento de ter deixado passar aquela oportunidade de ver o homem! Não bem arrependimento, já esclareci aqui que as condições eram impossíveis. Foi mais uma sensação de “puta-que-pariu-por-que-que-eu-não-tenho-grana-suficiente-fiz-filosofia-que-paga-pouco-passei-no-mestrado-que-pra-nada-serve-to-indo-pra-porto-alegre-e-to-deixando-de-mandar-tudo-pros-quintos?”.
Com este sentimento engasgado recebi de supetão, já em 2012, a notícia de que BB King faria mais uma turnê no Brasil. Chicago perdera, então, a chance da ilustríssima presença de dois brasileiros bonitões, eu e o senhor Rudah. Tamanho o desespero com a idade do homi avançada e a nossa não ida à São Paulo, ir vê-lo tocar  lá nos states já era muitíssimo plausível. O que deixou de ser necessário com o dito anúncio.
Que foi foda comprar ingresso, que a platéia vip era cara, que SP é longe pacaralho... “Mano, o BB King vai tocar em SP, Curitiba e Rio. Em qual vamos?”. A conversa via celular foi nesse tom, sem opções de “se formos” e “tá foda ir”. No momento que o ser rudaniano tentou pular para trás, teve sua vida devidamente ameaçada e acabou lembrando do que é importante para uma existência plena. Juntou-se a nós o ser pedroniano gauchus passus fundensis, e, com três meses de antecedência estávamos nós com passagens, hotéis e ingressos comprados. Evidentemente, mais pobres.  
Tudo isso para, a duas semanas atrás, aplaudir de pé a entrada de um senhor de 87 anos, com seu paletó azul com brilhantes, sua face limpa sem seu tradicional bigode, seus sapatos que reluziam como ouro e uma tal guitarra chamada Lucille. E aplaudir a cada solo, a cada música, a cada piada, a cada encantamento da platéia com seus movimentos bonachões e “notas que valem como mil”. Ser mais um anônimo na escuridão da casa que estava ali para observar, contemplar, sentir. Minhas mãos saíram machucadas. Minha alma, limpa. Foi uma aula de vida ver alguém nessa idade espalhar tanta alegria, tanta jovialidade, tanta beleza. Daria tema para outro texto, e quem sabe um dia saia mais alguma lembrança. Para fechar, fico com sua saída do palco, recoberto com uma sobretudo preto, escondendo sob o chapéu e o corpo cansado o blues man que encantara a platéia momentos antes.
Salve, BB King!


3 comentários:

Rudah A. L. disse...

Cara, vc escreve bem!

Fazia tempo que não lia teu blog.
To ficando enferrujado... ahahahahhahahahahahahahha

E que fds foda!

Abraço!

Marco Fabretti disse...

agradecido senhor!


confesso também que não escrevo muito por aqui... isso foi um dos mals facebookanos, lá se posta as sementes e não se desenvolvem, ficam ao léu e esquecidas em poucos dias. pretendo recuperar o caráter de transmissor de ideias deste blog, portanto, sinta-te a vontade para aqui comparecer.



e foda é apelido, mano... foi a noite em que mais peidos e besteiras perfilaram um único metro quadrado. haiuahiuahiuahiuah


abraços

Rudah A. L. disse...

É a ideia. Menos face, mais textos (mesmo que seja de blog).

Cara, eu todo inocente me referindo ao BB King e talz, e vc me comenta sobre peidos e besteiras ditas! É por isso que vc é meu amigo... hahahahahahahahahahah

Abraço!