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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Prelúdio


O dia está a terminar, cedendo à noite espaço no orbe. Partículas de chuva imóveis no vidro do carro; protagonizam uma e outra conforme as luzes da cidade lhe atravessam. Em especial, a luz azul da rodoviária, tão diferente dos amarelos dos carros e brancos dos letreiros gigantes que tomam a visão por detrás das árvores. A pouca luz a qual se pode optar quando num carro como passageiro é algo que lhe havia passado. Deixou esgueirar-se por pensamentos ao som da língua estranha da banda que tocava, e neste entremeio percebera as partículas azuis...

Como rotina, agradeceu o transporte, retirou suas três bagagens do porta mala e desceu as escadas ao lado do templo. O sol se punha a oeste da porta, e quando o fazia, ou quando se o notava, acariciava de laranja o teto acinzentado e os detalhes em vermelho. Sua porta se voltava ao norte por alguma razão em especial? Há sempre simbologias que deixamos passar cotidianamente; algumas, no entanto, são notadas quando os olhos deixam de mirar um futuro ou se envolver por teias tecidas num tempo que se foi. Simbologias: a posição das construções se encaixa bem, geralmente omissas no tempo e da memória. Poderiam entortar um bocadim, e a porta estaria a noroeste, ou nordeste, bombordo ou na borda. Mas estava ao norte, ou talvez não fosse mais do que uma impressão errônea que lhe acudiu sem muita crítica.
Não havia, apesar de tudo, Sol se pondo. A carruagem já passara, algumas estrelas pontilhavam o céu. Nuvens encobriam o lugar, nuvens cinzas que, de cinzas, tornavam a escuridão vinda da galáxia de um branco leve, leite e canela docemente azulada. Um vento soprava-lhe a face arbitrariamente, intensidade e duração dependiam muito da sua vontade. O pé esquerdo não deixava de lembrar suas impossibilidades para a situação; tornava claro que melhor lugar para ele seria uma boa salmoura e pantufas almofadadas. O esquerdo, para variar, de esquerda. O pé direito também tinha lá seus problemas existenciais, mas seguia sereno para a escuridão do dojo que lhes aguardava. O esquerdo, de esquerda, o direito, centro-direita. Tudo na mais perfeita ordem.
Como habitual, procedeu com a limpeza do local, vassouras em três companheiros. Notou ao buscá-las os velhos novos rodos, que se aposentaram por imposição doutrinária. Ficavam ali, no banheiro escuro, rumo ao ostracismo. Afinal, ninguém há de contar a história de dois rodos. “O resgate do rodo azul contra o dragão de Valência”, ou “A grande escapada: dois rodos em Alcatraz”. Se ao menos fossem vassouras, histórias de bruxas nunca hão de faltar. Mas rodos... cada um com o destino que sua essência possibilita. No caso dos rodos, essência não realizada, mas o mundo não nasceu para ser justo. Limpava-se agora o chão com as mãos, panos úmidos e força nas pernas. A isto também se deu nosso herói.
Luzes acesas, janelas abertas, chão conforme, foi colocar vestimentas propícias. O keikogui meio umedecido, o hakama e suas pregas tortas na linha da cintura. Vestiu-se em silêncio, que não ficasse nada fora de lugar. Sua espada ao lado, ainda no invólucro verde que lhe guardava já havia algum tempo. Retirou-lhe, colocou sua empunhadura, voltou-se ao lenço que decerto usaria mais tarde, e ao conjunto acrescentou uma pequena garrafa que deveria conter água, canudinho rosa à mostra. Na saída do vestiário, inclinou o corpo devido à saudação que também já lhe era familiar. Pois houve um tempo que não o era, bem sabia. Recurvar-se nunca fora um de seus fortes. Ao menos perante àquilo que considerasse inferior, e à primeira vista muita coisa sempre o era. Preconceitos que o tempo, na maioria dos casos, fazia ir embora.
O salão iluminado voltou-lhe à vista. De frente o espelho grande que refletia todo seu corpo. Pediu rapidamente um esparadrapo emprestado, ao pé esquerdo prometera-lhe alguma demagogia: calava-se em troco de uma proteção. Sentou-se no sofá, colocou o curativo, reforçou-o com uma ou duas tiras finas. O ar estava leve e limpo, a noite penetrava na sala iluminada. Simulou golpe, enganando o pé marxista, mas este por pouco tempo se deixou ludibriar. Encheu de água a garrafinha, um ou dois goles para molhar sua boca. Logo veio o comando: Seretsu! – ecoou pela sala a voz do senpai que retornara, o posto que era seu. Já não havia tempo para um chá das cinco, com pensamentos longos e movimentos contidos. Pelo contrário: pensamentos curtos, repetição de movimentos, movimentos rápidos e fortes, enganação da dor. Superação, para um objetivo que necessitaria de outro texto para expressar-se. Enfim, começara o treino.

2 comentários:

Tomazini disse...

li um parágrafo e meio =/... seja mais direto

Marco Fabretti disse...

é, vou me mudar para o twitter... ¬¬