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sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Juarez

Sexta feira, 12 de agosto de 2011

Chego em casa, entro o computador como é hábito. É comecinho da tarde, estou com a pequena que foi comigo à escola ver a sala que ajudou a pintar nas férias de verão. Recebo do Pedro, um dos meus alunos, a seguinte mensagem pelo facebook:

“Um adolescente morreu e outros dois foram feridos em um tiroteio no Bairro Restinga, na manhã de hoje. Segundo a Brigada Militar, por volta das 11h, um homem entrou armado numa lan house na Avenida Nilo Wulff, no Bairro Restinga, e atirou contra Juarez Fernando Oliveira Weber, 15 anos. Atingido pelas costas por cerca de seis a sete tiros, ele faleceu durante o socorro..
Um adolescente, de 11 anos, que também levou um tiro nas costas, foi transferido para o Hospital de Pronto-Socorro e não corre risco de vida.. Um homem de 20 anos tentou correr e foi ferido com um tiro na nádega..

A causa do crime seria uma briga entre gangues


Porque as coisas nao podem simplismente acabarem como devem,sempre tem alguem q estraga isso antes da hora”


Deveria eu brigar com o Pedro, é minha primeira reação. “Nao” está sem acento, “porque” é separado, “simplistemente” está errado, e por aí vai. Mas não brigar seriamente, falo assim porque sou um de seus professores e, como todo professor, pego no pé para o bom uso da língua portuguesa, vício da profissão. 

No entanto, não brigarei. Não encherei seu saco mandando ele dormir cedo para parar de matar aula. Não direi a ele que ontem ele perdeu texto e tem que copiar de alguém. O Pedro é meu aluno, mas não o único. Entre tantos outros, há um que já não está entre nós. É o que diz a notícia que o Pedro me mandou. É o que estou dividindo com aqueles que lerão este texto. Porque, se de alguma forma me expresso bem, presumo que seja pela escrita. E necessito agora da melhor forma de expressão do mundo, aquela que diz o inexprimível. O Pedro perdeu um colega. A escola perdeu um de seus membros. Eu perdi um aluno. 

Isso dói.

Dói, e dói muito. 

Após o recreio, eu e a Karen na sala dos professores com o Ederson e a Estela estávamos aguardando o fim do dia de trabalho. Já não tinha mais aulas para mim, e isso na sexta quer dizer feriadão para professores vinte horas. Ainda mais que, depois de chuva atrás de chuva, a Restinga brilhava com o Sol que irrompeu desde o começo da manhã. Foi quando aparece o Walter e diz aturdido:

- Meu, mataram o Juarez, ali na lan house. 

O resto é história. A escola inteira logo soube, os professores se chocaram, a guarda municipal foi chamada, os alunos comentaram. Parte da explicação para o rebuliço  é a óbvia movimentação que um acontecimento destes causa em qualquer lugar. Mas presumo que não seja somente isto. Na verdade, acho que ninguém na escola passou incólume pela presença do Juarez e seu jeito um tanto quanto peculiar. E agora o Juarez está morto, sem jeito ou trejeito, sem presença, sem relação alguma.

Juarez era meu aluno desde o ano passado. Um menino de olhos verdes, grandes lábios, dificuldade na fala, um jeito meio desengonçado que vivia de boné. Suas mãos eram ásperas, um comprimento e logo se notava. Se havia uma característica latente, ao menos à primeira vista, era a de ser um tanto quanto encrenqueiro. Quando perguntei pela primeira vez sobre ele, disseram-me que era brigão, e por isso vivia isolado no canto da sala. Para mim era natural que fosse brigão, custava alguém parar e perceber como a chacota vinha fundo dos colegas. Não só a ele, que fique claro. Isto não é uma vitimização que explique qualquer coisa do que aconteceu hoje. Apenas relato porque dói agora. Ou tento. E isso inclui dizer que, por bem ou mal, ele me chamou a atenção por sua exclusão e pelo modo como chegava até a aceitar tal exclusão em nome da aceitação, beirando limites que logo rompiam em brigas. 

Mas desde que sentei para conversar com ele e pedir que ele não entrasse no jogo dos colegas, sua produção em sala e postura melhoraram. Não fossem as faltas, daria A para ele no primeiro trimestre - fiz questão de dizer isso perante a sala. O esforço que fez neste ano para se adaptar a um ambiente que lhe era hostil e mostrar trabalho demonstrou-me claramente a vontade em ser reconhecido, ser aceito. Soube por ele que começara a trabalhar num supermercado, e me pareceu estar mais feliz do que jamais  estivera desde que eu o conheci, ao ponto de me propor insistentemente que eu apresentasse a Aline, companheira de AP, para ele, que “gostava de mulheres mais velhas”.  

Tão feliz que sua postura com a turma mudou. Ele ainda não era aceito pelos colegas, mas já tentava escancaradamente chamar a atenção e cultivar relações com alguns, mesmo que com brincadeiras sem graça e fora de contexto. Sua auto-estima melhorou. Tanto que tive que chamar duramente sua atenção quando, ao debater sobre a postura da turma com alguns alunos sobre a exclusão em que o colocavam, a ele e mais dois colegas, ele mesmo chamou um destes outros excluídos por um apelido ruim. O sujo falando do mau lavado, disse a ele. Repreendi-o, mas sabia que ali já era uma forma dele tentar se integrar  aos que zombavam dele, ainda que zombando de outros.  Adolescentes, pensei eu, há dez anos atrás eu tinha a idade deles. 

Há algo em mim de Teresa que escondo, que vigio, mas que me marca mesmo que eu não queira. Minha mãe sempre foi dotada de um coração extremo quando algo lhe toca, ainda que talvez hoje o toque menos coisas. Um coração que se solidariza com os mais fracos, os excluídos, com aqueles que precisam de uma mãe, chegando a fazer por eles o que usualmente não se faz – haja lugar para tantos cestos de índios. Chegava a ser cômico minha irmã, educadora de base, fazendo campanha em casa para que não se dê esmolas, depois que voltava das saídas  de Kombi para pegar meninos em sinais. Ela era a razão, que sabia que dar esmola é fomentar aquela vida, que a única esperança de uma vida desmarginalizada seria uma família melhor estruturada e educação, não “dois real”. Minha mãe, se eu pudesse escrever uma história, seria a emoção, essa que quando guia a alma nos leva às maiores coisas e, infelizmente, às menores também – e é me escondendo destas que me vigio. Claro que há uma série de contextualizações para que a história seja precisa, mas a ideia não é contar como é minha família, e sim porque, no final das contas, agora me dói.

O Juarez sempre encarnou para mim essa figura que cativava meu carinho, ou até mais, que o necessitava. Hoje, fui caminhando em silêncio até a lan house em que acontecera. Não sei porque fui, não sei o que queria falar. Fui, e só pude perguntar se era de fato o Juarez ao policial, e na afirmativa deste, se o corpo estava ali. Me senti ofegante quando o policial falara que levaram com vida ao hospital, mas foi preciso só mais algumas palavras para o mal entendido se desfazer e ele me confirmar que este era outro, que o Juarez mesmo estava morto. “Óbito confirmado”, foram as palavras, quase como alguém que classifica nozes num armazém. Não soube se o corpo estava ali ou não. Só voltei para a escola, da mesma maneira como vim. 

Juarez não era meu filho, tampouco tinha alguma ligação afetiva grande comigo, se a alguém parecer estranhas todas estas palavras. Sim, sou só um professor. Via-o em minhas aulas e eventualmente no pátio. Mas Juarez tinha um pouco de filho. É assim que me sinto com meus alunos, por mais ingênua que esta afirmação possa parecer. Já escrevi e repito: ninguém “professa” sem amor àqueles que ouvem, ainda mais quando são crianças. E digo com a certeza que adquiri nestes poucos meses como professor: com quinze anos eles ainda são crianças, por mais indisciplinados e rebeldes que pareçam.
E crianças com sonhos. O do Juarez era a de conhecer minha colega de Ap, ao menos este foi o que ele me contou. Talvez juntar dinheiro com seu trabalho e comprar um carro aos dezoito. Ou, imaginando um pouco, encontrar um lugar onde seu sorriso fosse aceito sem chacotas, sem brincadeiras, sem discriminações. Porque é disso que lembro quando penso no menino brigão que não estará em minha aula na semana que vem: dois olhos verdes que se abriam num sorriso. Sem mais sorrisos. Sem sonhos. Sem cumprimentos e tentativas de chamar atenção. Tudo por causa de um filho da puta que tem uma arma e que poderia ter atirado em si próprio, se dá tão pouco valor à vida como demonstrou. Se é que esse filho da puta não foi um que foi aluno da escola e para qual a escola foi só um grande pedaço de nada.

É Pedro, concordo contigo. Porque as coisas não podem acabar como devem, sempre alguém tem que estragar isso antes da hora? Não há resposta que baste. Há em mim só um ódio que me lembra de vez em vez o quanto é insuportável estar nesse mundo com perguntas sem respostas. 


Adeus, Juarez. É o que gostaria de dizer agora, se tivesse a certeza da existência de um céu. 

Mas não tenho. Só me sobra a dor. E estas palavras que de nada valem.





6 comentários:

Rudah A. L. disse...

Bicho, queria poder te dizer algumas palavras reconfortantes, mesmo não sendo tão bom com palavras assim. Mas no fim das contas não há palavras que façam esse tipo de dor passar mais rápido.
Fica aqui então o meu silêncio juntamente com o apoio (ainda que somente virtual) para o que precisar.

Abraço!

W.G.R. Lippold disse...

Tá doendo muito meu, valeu pelo texto, expressou o que eu sinto tb.

Adilson Zabiela disse...

Poisé Marco... Eu não acompanhei tanto quanto tu a presença do Juarez em sala de aula, pois entrei faz pouco tempo na escola. Mas te confesso que achei muito triste a morte dele, especialmente por ser sem razão nenhuma. Já é o terceiro aluno que perco ali na Restinga em 5 meses de magistério. O primeiro foi um rapaz de 32 anos que estudava no EJA de noite. Era catador de papel, trabalhador, cheio de sonhos, que perdeu a vida porque um rapaz que queria assustar a namorada - e que também era meu aluno na outra escola - resolveu atirar contra o ônibus e acertou nele. 2 mortos e um preso. Nem sei mai o que pensar ou dizer de tudo isso... nunca vi coisa igual...

Lih disse...

Vc fez sua parte e continua fazendo. Infelizmente isso não depende só de nós. Me orgulho de vc.

Elenilton Neukamp disse...

Marco, várias pessoas comentaram terem se sensibilizado com o texto (como eu). Mas ontem conversamos com uma colega que falou sobre ele, e ressaltou uma das últimas frases.
Ela disse que marcou muito isto:
"É o que gostaria de dizer agora, se tivesse a certeza da existência de um céu."
Ela disse que tragédias como esta colocam em xeque a fé das pessoas.
Eu, se tivesse fé em alguma coisa como um deus ou sei lá o quê deste gênero, questionaria o poder ou a "bondade" suprema desta divindade.
De que adianta ser todo poderoso se não usa este poder para impedir a injustiça?

Marco Fabretti disse...

Agradeço os comentários de todos, antes de tudo.

Elenilton, é o que diz a música neh, se deus é justo, então quem é que fez o julgamento?

Haverá crentes e mais crentes que dirão "besteira!" ou "Blasfêmia!'" - os mais burrinhos -; ou "prova divina" - os resignados; ou "valoração do homem através da dor" - os fervorosos.

Nenhum deles incorporará o espírito santo e trará de volta os que morreram em guerras, em chacinas, em acidentes, em calamidades... mas falarão em deus, e na esperança, e no céu.

Judeus mortos por Hitler não querem saber de céu; os meninos da Candelária não querem saber de céu; O Juarez tampouco. Querem é que os motivos nada divinos que levaram-os à morte sejam esclarecidos, punidos e abandonados. Se será deus o operador do Direito ou um reles humano, não importa para eles, me parece.

Mesmo que haja um deus, haveria muitas definições que usaria antes do senhor mal e punitivo de barba branca judaico-cristão. Um grande amigo meu prefere vê-lo como um par de belas coxas com uma saia de couro onipresente em sua cama e onipotente em sua capacidade sexual. Tirando o caráter anedótico da coisa, minha opinião vai mais ou menos por aí: se há um deus, ele pode ser x ou y. a questão é: mesmo que haja um deus, do que isso me importa?


e aí serei mais contundente: de nada me importa; justamente porque ele não julga, porque não interage, porque não normatiza, porque não sofre e porque não morre.

E mais, se há um deus criador, ele me criou com todos os meus defeitos e ânsias, e minha busca pela plenitude advém de sua vontade divina, e minha indignação com a banalização da vida também. Portanto, usar da capacidade de mudar o mundo para algo que seja bom é atender a vontade deste deus, se ele me fez pronto para agir.

Um deus que cria resignados, medrosos, desculposos, ingênuos, fofoqueiros, submissos e outrens, para mim não é um deus, é uma paródia.


Está tudo em relação à nossa humanidade, inclusive a existência de um deus e, mais importante, a noção de justiça.

Só por isso vale ser humano.