Ele tinha um dono, meu pai. Tinha alguns parceiros de matilha, para quem demonstrava afeto e gostava da companhia, e neste grupo nos encontrávamos. Ai daquele que o contrariasse, o machinho alfa de palmo e meio de altura. Colocava os dentes à mostra, eriçava o pelo e rosnava ferozmente, preparando a mordida. Com meu pai, não que ele não tentasse; mas meu velho não ligava e deixava morder. Daí a perceber que era brincadeira há infinitas instâncias, eu é que não me arriscava a emular esta relação.
Ele tinha um dono, mas sua longa vida canina foi marcada por outros cuidadores. Passamos a infância proibidos de ter animal de estimação, ora porque prender bicho era errado, ora porque eu tinha bronquite e animais de estimação sempre foram um tabu para o médicos que me consultei. Cresci com essa culpa. Então imagine a surpresa quando minha mãe falou que tinha ganhado um cachorrinho, um pinscher, e que ela aceitara! Foram dias de expectativa e felicidade os de espera. Até que, num fim de semana em nossa antiga casa, ele veio e nos encantou a todos. Uma bolinha redonda de pelos nos foi apresentada e nos apaixonamos à primeira vista. Lembro que passava um anime à época e dele tirei seu nome, Yuki. Peguei-o, levei-o para a pracinha que costumava brincar e ele ficou em meio às minhas pernas, escondido do mundo. Me lembro, enternecido, quando fazia meia hora de carinho em sua barriga e ele dormia o sono dos cães dóceis, ou o quão carinhoso ele era com todos da casa, ainda que com seus trejeitos de sisudez que se acentuaram pós seus 10 anos.
O tempo passou, e sua personalidade foi sendo marcada. Me viu terminar o ensino médio, terminar o primeiro namoro, entrar na faculdade e, quando me dei conta, não era mais eu quem o chamava para passear e lhe passar a corrente que para ele era liberdade. Desci em busca do mestrado e acabei perdendo sua velhice, seu companheirismo, sua ranhetice e seu vínculo sólido com meu pai. Quando voltei, o fiz acompanhando de um bebê humano e de uma cachorrinha branca e peluda, que só lhe deixava agitado. Eu era o estranho no ninho, ele um senhor de respeito com poucos grisalhos.
Da última vez que o vi estava cego, mas ainda sentia nosso cheiro e nos reconhecia. Andou de ter desmaios, o pequeno preto. Eventualmente não comia. Tinha um xodó pelo seu dono que só quem conhece sabe. E foi com seu dono que morreu, nosso Yuki. Recebemos por duas semanas notícias aflitas de Maringá de que ele não comia, ficou internado, os rins estavam falhando, assim como o coração que já há algum tempo precisava ser medicado. Meu pai em Porto Alegre, salvando um filho da tristeza, volta suas 18 horas de ônibus para chegar e encontrar o preto, que balançou pela última vez seu rabinho, deitou ao Sol na sua frente e dormiu. Desta vez, para sempre. Foi um cachorrinho amado, bem cuidado, nos ensinou que somos responsáveis por outras vidinhas, esses três filhos de Teresa e Roberto. Deixa um buraquinho aqui. Obrigado, companheiro. Obrigado.
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