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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

A aula

“A obra de arte ‘fixa e torna acessível’ o mundo em que vivemos e que percebemos sem nos darmos conta dele e de nós mesmos nele. A obra de arte nos dá a ver o que sempre vimos sem ver, a ouvir o que sempre ouvimos sem ouvir, a sentir o que sempre sentimos sem sentir, a pensar o que sempre pensamos sem pensar, a dizer o que sempre dizemos sem dizer. Por isso, nela e por ela, a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto, ouvido, dito, sentido ou pensado. Eis por que o artista é o que passar pela experiencia de nascer todo dia para a ‘eterna novidade do mundo’.”

Foi com este excerto que começou a provocação. Chauí para ensino médio, muito conceito para pouco texto, muitas entrelinhas para uma turma de oitavo ano. Mas lá estava ele, professorando, ou tentando, e não seria um excerto curto o motivo de recuar de suas iniciais e experimentais aulas de estética. Diria que poderíamos dividir a arte em compartimentos como erudita, popular e de massa. Diria que poderíamos ver a arte como imitação ou criação. Afirmaria que arte é a expressão de nossa humanidade por vários meios, e que nela há intencionalidade e consciência, e que por isso os leões não a produzem. Faria aqueles jovens tentarem definir o que é o belo, e em meio a tantas relativizações e busca por um conceito mãe perceberem o caráter cultural e múltiplo de um tal conceito. Os provocaria a buscar uma suposta mensagem oculta num chuchu que alguma professora esqueceu no parapeito da janela como experimento e se surpreenderia sobre como seus alunos enxergariam ali vida e morte, alegria e tristeza. Apresentaria um documentário sobre a arte de rua e os provocaria a construir rimas ou cordéis. Possivelmente fuçaria na net atrás de um filme sobre arte erudita, e “Minha amada imortal” estava já em sua cabeça. Tudo isso, e mais o que ainda viria a planejar, mas não agora. 

Agora queria que seus alunos fechassem seus olhos e ouvissem, e se permitissem ouvir aquilo que ouvimos sem ouvir na corrida vida cotidiana. Eles fecharam, e se surpreenderam como ainda havia pássaros a cantar no mundo, ou como são efusivos os meninos jogando bola numa quadra distante. Agora, nesse contexto de Chauí e seu excerto, gostaria de achar algo em comum de nossa humanidade para que seus alunos colocassem em evidência, sentissem e pensassem o que sempre sentimos e pensamos de forma automática. Não foi difícil elencar um tema que preenchesse este critério. Quem nunca amou? Pois então, defina-se: o que é o amor? 

Algumas redações chegaram na mesma aula, outra na aula seguinte. Aproveitando que veria com eles o tal documentário, fez um círculo sem classes e, antes da exibição, instigou-os a ler suas definições. E aí aquela molecada expressiva fica muda, a vergonha de se expor é grande. Oferece-se para ler sem dizer os nomes e somente então uma pilha de cadernos se forma ao seu lado. Ele começa, enquanto alguns ainda rabiscam nas folhas suas últimas ideias. 

Um desses rabiscantes chama sua atenção pelo canto do olho. Havia rasgado já três folhas, insatisfeito com o que escrevera, e de repente solta um “sor, não quero escrever, estou com raiva”. Ok, escreva com calma em casa, sem problemas. A causa da raiva não se sabia, mas o professor imaginara que pudesse ser pela chamada de atenção que dera por ter o pequeno riscado a parede com corretivo e a consequente limpeza que o obrigara a fazer; mais ainda, a turma já havia pegado no seu pé ao entregar a ficante que ali estava, e era claro que ambos gostariam de fazer segredo. Ora, fazer em casa em paz uma redação valendo nota nada mais é do que se fazer justiça. Então que assim fosse. 

Voltando à leitura, a primeira foi daquele que menos se esperava, aquele que provavelmente não faria com toda a seriedade devida... mas que, pasmando seu tutor, fez com clareza e sinceridade. Seu amor era o de sua mãe, e por ela ele inclusive pedia desculpas e dava o braço a torcer. A turma aplaudiu. Depois de outras tantas concepções saírem das linhas do caderno para o centro do círculo, chegamos à última em que, mais uma vez, o professor é surpreendido. Nunca vira aquele guri escrever mais que dez linhas, dessa vez tinha feito trinta. E para ele, sua mãe e sua irmã caçula representava o amor, e seus primos presos e seu tio falecido que cuidavam dele quando criança. Foi difícil se segurar ali, mas o professor estava bem treinado. 

Quando, finalizada a leitura daqueles que quiseram se expor, o menino rabiscante e pichador de parede com branquinho levanta impetuoso e coloca o seu caderno ao lado do professor. “Pronto, sor, fiz. Pode ler.” O professor olha e vê ali dez linhas, mais ou menos, e decide que mais dois minutinhos para esta atividade não é perda, é lucro. Mas, diferentemente dos outros textos os quais tinha já dado uma primeira olhada e apontado erros de português, este veio fresco, era pá pum, ali e sem volta. Então ele leu. 

“Minha mãe morreu quando eu era criança. Meu tio que cuidava de mim também. Então eu não sei o que é o amor”. 

Não foram estas palavras, mas foi esta mensagem. A raiva, a inquietação, tudo se explicava. Quando notou que chorava percebeu que o aluno também, mas com seu rosto escondido entre as mãos. Só pôde dizer que sua mãe, enquanto presente, deve o ter amado muito. Sua vontade era de abraçá-lo, ofertar a ele o que pudesse. Outros choraram junto. E foi o que puderam ofertar a ele: suas presença, lágrimas, empatia para aquela dor. 

A obra de arte os fez sentir o que sentimos sem sentir. Um objetivo alcançado? Não importava mais. Nessas horas, muito pouco importa realmente. Ele agradeceu a confiança que o aluno colocou nele e em seus colegas para dividir aquilo conosco. Nunca uma viagem de volta sobre um moto demorou tanto. O que fazer? O mundo não é justo, não foi a primeira nem seria a última vez que seu coração ficara lá na Restinga, essa entidade que lhe toma tanto daquilo que tem de melhor. 

Por ora, sentou com seu teclado e escreveu. Era só o que podia fazer.

2 comentários:

Valdy Junior disse...

Meu caro... e tu faz isso comigo...?! e tu não sabe que esses meninos e meninas são a minha vida?! tu quer acabar comigo...?! que lindo, meu caro amigo!! ou as coisas melhoram com essas crianças... com sua sensibilidade... com sua honestidade... com sua dor... mas que dor linda! dor linda? me permita a arte... aquilo que não dá para explicar! sim, a dor, ela mesma produtora de solidariedade... era pra ser aula de estética; mas o menino optou por ética: "sor, por hoje é isso... pode sair!"

Aline disse...

Ótimo saber que os alunos têm um lugar em que são instigados a refletir, a sentir e a trocar com o outro! Que mais experiências cotidianas e artísticas contribuam para esses momentos de troca!